domingo, 17 de julho de 2011

Assembleia e acampamento dos professores


A imagem pode estar um pouco prejudicada, por eu ter gravado do meu celular, mas a ideia geral é clara e não foi decidida por meia dúzia de gatos pingados, foi decidida por centenas de professores. Essa cena, gravada em 29/06/2011, se repete em todas as assembleias que eu vou, e cada vez mais professores aderem à greve. Devo dizer que estar ali, fazendo parte de uma decisão tão importante é algo que me comove. Acredito que, mais uma vez, estou lutando pelo que é certo, e, tentando mudar o curso da história.

A greve continua, assim como as ofensas do governo contra os professores. Nesse momento vários estão acampados em frente a secretaria de educação do Rio de Janeiro e vão permanecer, até que a assembleia decida o contrário ou até que o governo negocie conosco.
Sabendo mais eu posto aqui! Bom descanso para os que estão de férias, porque aqueles que estão de greve, abriram mão de suas férias.

Um grande abraço,
Alícia

Entendendo o Movimento dos Professores da Rede Estadual de Ensino.




Senhores Deputados.

Entendo que a maioria dos senhores, que não são da área da Educação, não têm a obrigação de saberem os pormenores que levaram à deflagração da greve que há mais de um mês atinge as escolas da rede estadual. Só peço aos senhores paciência para lerem as considerações a seguir.
Desde o início do ano letivo de 2011, os representantes da categoria têm tentado apresentar ao Sr. Secretário de Educação, Wilson Risolia, as nossas reinvindicações, mas a estratégia dele foi sempre a de nos ignorar.
Aliás, o desprezo pela nossa categoria tem sido manifestada desde a sua posse, quando declarou que os professores ganhavam bem pelo que trabalhavam. “Maravilhoso” começo de gestão, que deu o “ponta- pé” inicial na relação mais conturbada que já vi entre um secretário da pasta e os professores na história deste nosso Estado do Rio de Janeiro.
Como nunca havia colocado os pés antes numa escola estadual, desconhecia, e ainda desconhece, que cada professor tem em média 240 alunos. Imagine o quanto isso representa de trabalho extraclasse, salientando-se que raríssimas são as escolas estaduais que têm orientadores pedagógicos e educacionais. Somos vítimas, como também ocorre com muitos parlamentares, do trabalho invisível, haja vista que também é muito comum se considerar no caso dos senhores somente a presença no plenário, e não o trabalho nas bases, nas comissões etc.
Neste início de ano letivo a SEEDUC nos brindou com um famigerado Plano de Metas, sem qualquer participação da comunidade escolar, tentando implementar na rede estadual de educação a lógica de produtividade da iniciativa privada. A visão é de se organizar a escola como uma fábrica, os professores como máquinas e os alunos como mercadorias.
Assim, a remuneração dos professores está diretamente atrelada ao alcance das tais metas, reajuste salarial nem pensar. Então, para o professor ter direito a um “14º salário” as metas são as seguintes, fruto da “genialidade” da equipe da SEEDUC: Ótimo desempenho dos alunos na prova padronizada do Saerj (português e matemática), sem qualquer consideração às peculiaridades de cada escola, sendo submetidos a esta prova também os alunos com necessidades especiais, cuja inclusão no ensino regular é garantido por lei, e também os alunos que não tiveram aulas destas matérias por carência de professores; índices de gravidez, envolvimento com drogas, participação dos maiores de 16 anos nas eleições, distorção idade-série (e os alunos especiais ?) e outros absurdos que nada têm a ver com o processo pedagógico, este sim de responsabilidade, dentre outros profissionais, também do professor. Isso sem falar no professor que acometido de alguma doença e cometer o abuso de tirar licença-médica, sofrerá como punição a exclusão da virtual gratificação.
Desde o início do ano letivo temos tido a preocupação de colocar, tanto alunos como seus responsáveis, a par de todos estes pontos da política educacional do Estado. Portanto, não nos surpreende o grande apoio que temos recebido ao nosso movimento, mesmo conscientes do prejuízo momentâneo que estão sofrendo, mas participando conosco de uma luta que tem por objetivo traçar um rumo responsável para a Educação no nosso Estado do Rio de Janeiro para os próximos anos.
O discurso da falta de verbas para reajustar os salários dos professores, não encontra eco entre os responsáveis pelos alunos, que na maioria foram eleitores do Governador Sérgio Cabral, que constatam com os seus próprios olhos, ares-condicionados e computadores alugados por valores unitários maiores do que o salário de um professor, cada porta substituída no valor de R$ 4.000,00, pintura de sala de aula de 35m2 no valor de R$ 6.000,00. Em Nova Friburgo, a reforma da quadra esportiva do maior colégio estadual da cidade custou o preço de uma fazenda, cerca de R$ 800.000,00.
Aliás, citando Nova Friburgo, cidade que mais sofreu com a tragédia da região serrana, temos um índice de 70% de paralisação. Acredito que muito contribuiu para esta adesão a atitude completamente insensível da equipe da SEEDUC na época. Numa reunião com os diretores, os mesmos argumentaram pela necessidade de adiamento do início do ano letivo devido à perda de profissionais e alunos, mortos na tragédia, além de que inúmeras escolas haviam sido atingidas por deslizamentos e pelas águas, tendo suas estruturas afetadas. Isso sem mencionar que o nosso maravilhoso Instituto de Educação de Nova Friburgo, serviu de IML, abrigando mais de 400 corpos. Resposta dos técnicos: não queremos saber de sentimentalismos, o retorno se dará de qualquer jeito no dia 07 de fevereiro. Estas pessoas estão à frente da Educação em nosso Estado.
Não há segredo para uma educação de qualidade: profissionais qualificados e bem remunerados, estrutura e materiais pedagógicos adequados. Computadores são instrumentos a serem utilizados pelo profissional, não o substituem. A fórmula é conhecida, mas será que há interesse real numa educação pública de qualidade? Temo que não, pois quem ira querer pagar escolas particulares e quantos políticos querem o povo educado e crítico da situação do país.
Chegamos a um ponto crítico. Os professores não darão um passo atrás no movimento, mesmo que isso comprometa, inexoravelmente, todo o nosso ano letivo. Basta de colocar a culpa das mazelas nos profissionais que trabalham com salários indignos e são constantemente desrespeitados por “paraquedistas”, que jamais pisaram numa sala de aula da rede pública de ensino. O secretário Risolia distorce, desde o início da sua gestão, todas as estatísticas da SEEDUC. Faz declarações que a categoria sabe que não são verdadeiras, tentando nos incompatibilizar com a população. Chegou ao cúmulo de distorcer uma decisão judicial, fazendo publicar no site da SEEDUC que a justiça nos tinha obrigado a repor as aulas, omitindo a parte dispositiva da decisão que proibiu o corte do nosso ponto e anotações na folha funcional, reconhecendo o nosso direito constitucional de greve.
Hoje, o secretário-economista, se utiliza do Jornal O Dia para mais uma vez, de forma unilateral, sem qualquer diálogo com a categoria, anunciar o aumento da carga-horária dos professores, e não da hora-aula. Aumento de salário acompanhado de aumento de carga-horária significa somente agravar a crise provocada pela super-exploração da mão-de-obra barata em que se converteram os professores da rede estadual de ensino. Neste momento, em que deveria haver desarmamento dos espíritos para chegarmos a um consenso, ele novamente opta em provocar e mesmo afrontar a categoria. Lembremo-nos que ele também utilizou o mesmo meio de comunicação para declarar que estava lendo o livro “A Arte da Guerra” para conhecer melhor os inimigos. Quais ? Os professores.
Finalizando, está nas mãos do Governo do Estado o fim da greve. Já foi reconhecido por membros do governo que há recursos para conceder o aumento pleiteado pelos professores. Condicionar as negociações à suspensão da greve apenas arrastará o movimento por mais tempo, porque nem passa pelas nossas cabeças esta possibilidade, não há relação de confiança para isso. Ora, por que não negociar agora ? Quem recebeu a carta do então candidato Sérgio Cabral, ainda no seu primeiro mandato, é “gato escaldado” e não vai se arriscar na água fria.
Agradeço a paciência, mas os senhores talvez, agora, possam entender melhor a posição dos professores e tentar sensibilizar o governador para o atendimento das nossas reivindicações, porque com os secretários de Educação e Planejamento é muito difícil, pois para eles a vida está resumida a números e estatísticas, que têm o condão de fazer desaparecerem os seres humanos, que se submetem a spray de pimenta nos olhos e a ficarem acampados no meio da rua em condições humilhantes porque acreditam numa causa: EDUCAÇÃO PÚBLICA GRATUITA E DE QUALIDADE PARA A POPULAÇÃO TRABALHADORA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO.

sábado, 18 de junho de 2011

Sobre a greve



Venho pedir desculpas aos alunos que estão sem aulas devido a minha adesão a greve, mas achei que estava na hora de tentar parar de ensinar sobre política para vocês e realmente mostrar o que a política significa.
Política não é sinônimo de corrupção, é sinônimo de ação. Uma ação social, direcionada e que visa um bem maior. Nenhuma política é feita de forma individual, ela é sempre coletiva. Como professora, eu estava me trancando em uma bolha de segurança dentro de sala de aula, ensinando o que me era mandado ensinar, mas esquecendo o verdadeiro significado do que estava ensinando. Como posso lhes dizer para serem éticos e terem atitudes políticas se eu mesma não o estava fazendo?

Aderi a essa greve não só por causa do dinheiro. Todo mundo sabe que o professor ganha pouco, e eu sabia disso quando fiz o concurso. O dinheiro é importante na vida do ser humano, mas não é tudo. Quero um salário mais justo, e quem não quer? Quero saber que todo o estudo e todo o trabalho que eu tive para chegar onde cheguei, pode e deve ser recompensado. Contudo acho que essa recompensa deve vir da maneira certa. Reivindicar um salário melhor é apenas a ponta do iceberg. Essa greve é por muito mais do que isso.

Quantas vezes eu falei para vocês que não fazia greve e que não acreditava que a greve mudaria alguma coisa? Quantas greves eu furei e ouvi de vocês: "Os professores estão em greve, por que você não ficou em casa?"
Fazer greve é um direito assegurado na constituição à todo o trabalhador, mas fazer greve para ficar em casa, não é fazer greve. Fazer greve é um ato político e como tal deve ter um propósito que beneficia a sociedade. Não estou em greve para ficar em casa, estou em greve porque resolvi comprar uma briga em prol de um ideal. Algo que eu acredito e pelo qual vale a pena lutar, e esse algo não é meramente o salário, como a mídia vem noticiando, é o plano de metas do governo para a educação.

Quero que todos os alunos de escolas públicas tenham as mesmas chances dos alunos de escolas particulares. Quero um ensino de qualidade e a garantia do direito de vocês à esse ensino. Quero que vocês se formem sabendo mais do que sabiam quando entraram na escola, porque esse conhecimento que vocês têm direito a adquirir na escola é só uma base para o conhecimento que vão acumular no resto da vida. Só o conhecimento pode mudar a vida das pessoas!
É pelo ensino que estou lutando. É contra o sucateamento das escolas públicas, contra a desvalorização dos profissionais do ensino, contra metas educacionais que não visam ensinar e sim alienar, contra políticas públicas que servem para dividir os profissionais da educação e colocá-los uns contra os outros quando todos deveriam estar juntos.
Pode ser difícil para vocês entenderem, mas estou em greve por vocês, pelo meu filho e por todos os estudantes das escolas públicas. Acredito que vocês merecem o melhor e tem direito ao melhor. A educação está em crise e quem sofre com essa crise são vocês.
O que talvez vocês também não compreendam é a importância de vocês para o país. Os estudantes de hoje são os profissionais de amanhã. No futuro estará nas mãos de vocês fazerem o mundo continuar a girar. E a educação que recebem hoje é o que vai determinar como vão conduzir seu próprio futuro. Se essa educação for ruim e infrutírefa, vocês se tornarão meros papagaios. Sempre reproduzindo o que escutam, mas nunca refletindo, nunca questionando, sempre aceitando. E quando o mundo precisar que pensem, vão empurrar alguém para pensar por vocês. Isso não é bom e eu sei que vocês podem fazer melhor.

Por isso, apesar de estar comprando essa briga, ela não é só minha. Ela é de vocês, dos pais de vocês e de todos que se importam com o ensino. A educação é um direito de todos! E se vocês acreditam nisso, como eu acredito, não continuem alienados. Se informem, a internet serve para isso também!
Procurem o site do SEPE (Sindicato dos Professores) e as mobilizações que estão acontecendo nessa greve.

Um grande beijo,
Alícia


terça-feira, 1 de março de 2011

Imagens paradoxais

Essa imagem é um exemplo de uma imagem paradoxal. Representa um esquema em duas dimensões de uma escada contínua e infinita, onde o caminhante poderia permanecer subindo e descendo sem chegar a lugar nenhum. Foi criada por Lionel Penrose e seu filho Roger Penrose e simboliza um objeto impossível de ser concebido na realidade em que vivemos. Contudo, vários desenhos similares a escada de Penrose foram feitos, especialmente pelo pintor M.C. Escher que tinha particular afinidade pelas imagens paradoxais.


Essa é uma das representações da escada de Penrose feita por Escher. Analisem a imagem com atenção. Onde está a escada que os leva para fora das escadas?



Esse é outro exemplo da genialidade de Escher com desenhos paradoxais. Onde está o paradoxo nessa imagem?



Os Ouroboros, representados nas imagens acima, a primeira de Escher, e a segunda de um artista desconhecido, também simbolizam o contínuo interminável paradoxal. Símbolo clássico da continuidade, o Ouroboros era tido como um simbolismo para um ciclo contínuo, na medida que a serpente mordendo a própria cauda forma um círculo que dificulta a determinação de onde ela começa e onde ela termina. Na imagem de Escher, seu Ouroboros de distorce sobre si mesmo formando o símbolo matemático do infinito.
O paradoxo determina um círculo fechado sobre si mesmo, dessa forma, como podemos dizer onde algo começa e onde termina?


Complementando o assunto (recomendações):
Filme A Origem (2010)
Site Os paradoxos que atormentam a humanidade (clique aqui)
Ensaio filosófico sobre o filme A Origem (clique aqui)

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Para quê Filosofia?


As evidências do cotidiano
Em nossa vida cotidiana, afirmamos, negamos, desejamos, aceitamos ou recusamos coisas, pessoas, situações. Fazemos perguntas como “que horas são?”, ou “que dia é hoje?”. Dizemos frases como “ele está sonhando ”, ou “ela ficou maluca”. Fazemos afirmações como “onde há fumaça, há fogo ”, ou “não saia na chuva para não se resfriar”. Avaliamos coisas e pessoas, dizendo, por exemplo, “esta casa é mais bonita do que a outra” e “Maria está mais jovem do que Glorinha”.
Numa disputa, quando os ânimos estão exaltados, um dos contendores pode gritar ao outro: “Mentiroso! Eu estava lá e não foi isso o que aconteceu”, e alguém, querendo acalmar a briga, pode dizer: “Vamos ser objetivos, cada um diga o que viu e vamos nos entender”.
Também é comum ouvirmos os pais e amigos dizerem que somos muito subjetivos quando o assunto é o namorado ou a namorada. Freqüentemente, quando aprovamos uma pessoa, o que ela diz, como ela age, dizemos que essa pessoa “é legal ”. Vejamos um pouco mais de perto o que dizemos em nosso cotidiano. Quando pergunto “que horas são?” ou “que dia é hoje?”, minha expectativa é a de que alguém, tendo um relógio ou um calendário, me dê a resposta exata. Em que acredito quando faço a pergunta e aceito a resposta? Acredito que o tempo existe, que ele passa, pode ser medido em horas e dias, que o que já passou é diferente de agora e o que virá também há de ser diferente deste momento, que o passado pode ser lembrado ou esquecido, e o futuro, desejado ou temido. Assim, uma simples pergunta contém, silenciosamente, várias crenças não questionadas por nós.
Quando digo “ele está sonhando ”, referindo-me a alguém que diz ou pensa alguma coisa que julgo impossível ou improvável, tenho igualmente muitas crenças silenciosas: acredito que sonhar é diferente de estar acordado, que, no sonho, o impossível e o improvável se apresentam como possível e provável, e também que o sonho se relaciona com o irreal, enquanto a vigília se relaciona com o que existe realmente.
Acredito, portanto, que a realidade existe fora de mim, posso percebê-la e conhecê-la tal como é, sei diferenciar realidade de ilusão. A frase “ela ficou maluca” contém essas mesmas crenças e mais uma: a de que sabemos diferenciar razão de loucura e maluca é a pessoa que inventa uma realidade existente só para ela. Assim, ao acreditar que sei distinguir razão de loucura, acredito também que a razão se refere a uma realidade que é a mesma para todos, ainda que não gostemos das mesmas coisas.
Quando alguém diz “onde há fumaça, há fogo” ou “não saia na chuva para não se resfriar”, afirma silenciosamente muitas crenças: acredita que existem relações de causa e efeito entre as coisas, que onde houver uma coisa certamente houve uma causa para ela, ou que essa coisa é causa de alguma outra (o fogo causa a fumaça como efeito, a chuva causa o resfriado como efeito). Acreditamos, assim, que a realidade é feita de causalidades, que as coisas, os fatos, as situações se encadeiam em relações causais que podemos conhecer e, até mesmo, controlar para o uso de nossa vida.
Quando avaliamos que uma casa é mais bonita do que a outra, ou que Maria está mais jovem do que Glorinha, acreditamos que as coisas, as pessoas, as situações, os fatos podem ser comparados e avaliados, julgados pela qualidade (bonito, feio, bom, ruim) ou pela quantidade (mais, menos, maior, menor). Julgamos, assim, que a qualidade e a quantidade existem, que podemos conhecê-las e usá-las em nossa vida.
Se, por exemplo, dissermos que “o sol é maior do que o vemos”, também estamos acreditando que nossa percepção alcança as coisas de modos diferentes, ora tais como são em si mesmas, ora tais como nos aparecem, dependendo da distância, de nossas condições de visibilidade ou da localização e do movimento dos objetos.
Acreditamos, portanto, que o espaço existe, possui qualidades (perto, longe, alto, baixo) e quantidades, podendo ser medido (comprimento, largura, altura). No exemplo do sol, também se nota que acreditamos que nossa visão pode ver as coisas diferentemente do que elas são, mas nem por isso diremos que estamos sonhando ou que ficamos malucos.
Na briga, quando alguém chama o outro de mentiroso porque não estaria dizendo os fatos exatamente como aconteceram, está presente a nossa crença de que há diferença entre verdade e mentira. A primeira diz as coisas tais como são, enquanto a segunda faz exatamente o contrário, distorcendo a realidade. No entanto, consideramos a mentira diferente do sonho, da loucura e do erro porque o sonhador, o louco e o que erra se iludem involuntariamente, enquanto o mentiroso decide voluntariamente deformar a realidade e os fatos. Com isso, acreditamos que o erro e a mentira são falsidades, mas diferentes porque somente na mentira há a decisão de falsear.
Ao diferenciarmos erro de mentira, considerando o primeiro uma ilusão ou um engano involuntários e a segunda uma decisão voluntária, manifestamos silenciosamente a crença de que somos seres dotados de vontade e que dela depende dizer a verdade ou a mentira.
Ao mesmo tempo, porém, nem sempre avaliamos a mentira como alguma coisa ruim: não gostamos tanto de ler romances, ver novelas, assistir a filmes? E não são mentira? É que também acreditamos que quando alguém nos avisa que está mentindo, a mentira é aceitável, não seria uma mentira “no duro”, “pra valer”.
Quando distinguimos entre verdade e mentira e distinguimos mentiras inaceitáveis de mentiras aceitáveis, não estamos apenas nos referindo ao conhecimento ou desconhecimento da realidade, mas também ao caráter da pessoa, à sua moral. Acreditamos, portanto, que as pessoas, porque possuem vontade, podem ser morais ou imorais, pois cremos que a vontade é livre para o bem ou para o mal.
Na briga, quando uma terceira pessoa pede às outras duas para que sejam “objetivas” ou quando falamos dos namorados como sendo “muito subjetivos”, também estamos cheios de crenças silenciosas. Acreditamos que quando alguém quer defender muito intensamente um ponto de vista, uma preferência, uma opinião, até brigando por isso, ou quando sente um grande afeto por outra pessoa, esse alguém “perde” a objetividade, ficando “muito subjetivo”.
Com isso, acreditamos que a objetividade é uma atitude imparcial que alcança as coisas tais como são verdadeiramente, enquanto a subjetividade é uma atitude parcial, pessoal, ditada por sentimentos variados (amor, ódio, medo, desejo). Assim, não só acreditamos que a objetividade e a subjetividade existem, como enquanto a segunda, voluntária ou involuntariamente, a deforma.
Ao dizermos que alguém “é legal ” porque tem os mesmos gostos, as mesmas idéias, respeita ou despreza as mesmas coisas que nós e tem atitudes, hábitos e costumes muito parecidos com os nossos, estamos, silenciosamente, acreditando que a vida com as outras pessoas - família, amigos, escola, trabalho, sociedade, política - nos faz semelhantes ou diferentes em decorrência de normas e valores morais, políticos, religiosos e artísticos, regras de conduta, finalidades de vida.
Achando óbvio que todos os seres humanos seguem regras e normas de conduta, possuem valores morais, religiosos, políticos, artísticos, vivem na companhia de seus semelhantes e procuram distanciar-se dos diferentes dos quais discordam e com os quais entram em conflito, acreditamos que somos seres sociais, morais e racionais, pois regras, normas, valores, finalidades só podem ser estabelecidos por seres conscientes e dotados de raciocínio.
Como se pode notar, nossa vida cotidiana é toda feita de crenças silenciosas, da aceitação tácita de evidências que nunca questionamos porque nos parecem naturais, óbvias. Cremos no espaço, no tempo, na realidade, na qualidade, na quantidade, na verdade, na diferença entre realidade e sonho ou loucura, entre verdade e mentira; cremos também na objetividade e na diferença entre ela e a subjetividade, na existência da vontade, da liberdade, do bem e do mal, da moral, da sociedade, ainda acreditamos que são diferentes e que a primeira não deforma a realidade.

A atitude filosófica
Imaginemos, agora, alguém que tomasse uma decisão muito estranha e começasse a fazer perguntas inesperadas. Em vez de “que horas são?” ou “que dia é hoje?”, perguntasse: O que é o tempo? Em vez de dizer “está sonhando” ou “ficou maluca”, quisesse saber: O que é o sonho? A loucura? A razão? Se essa pessoa fosse substituindo sucessivamente suas perguntas, suas afirmações por outras: “Onde há fumaça, há fogo”, ou “não saia na chuva para não ficar resfriado”, por:  “eles são muito subjetivos”, por:
subjetividade? que é “menos”? O que é o belo? O que é causa? O que é efeito?; “seja objetivo ”, ou O que é a objetividade? O que é a; “Esta casa é mais bonita do que a outra”, por: O que é “mais”? Ou Em vez de gritar “mentiroso!”, questionasse: O que é a verdade? O que é o falso? O que é o erro? O que é a mentira? Quando existe verdade e por quê? Quando existe ilusão e por quê? Se, em vez de falar na subjetividade dos namorados, inquirisse:
O que é o desejo? O que são os sentimentos? O que é o amor?
Se, em lugar de discorrer tranqüilamente sobre “maior” e “menor” ou “claro” e “escuro”, resolvesse investigar: O que é a quantidade? O que é a qualidade?  E se, em vez de afirmar que gosta de alguém porque possui as mesmas idéias, os mesmos gostos, as mesmas preferências e os mesmos valores, preferisse analisar: O que é um valor? O que é um valor moral? O que é um valor artístico? O que é a moral? O que é a vontade? O que é a liberdade?
Alguém que tomasse essa decisão, estaria tomando distância da vida cotidiana e de si mesmo, teria passado a indagar o que são as crenças e os sentimentos que alimentam, silenciosamente, nossa existência.
Ao tomar essa distância, estaria interrogando a si mesmo, desejando conhecer por que cremos no que cremos, por que sentimos o que sentimos e o que são nossas crenças e nossos sentimentos. Esse alguém estaria começando a adotar o que chamamos de atitude filosófica.
Assim, uma primeira resposta à pergunta “O que é Filosofia?” poderia ser: A decisão de não aceitar como óbvias e evidentes as coisas, as idéias, os fatos, as situações, os valores, os comportamentos de nossa existência cotidiana; jamais aceitá-los sem antes havê-los investigado e compreendido.
Perguntaram, certa vez, a um filósofo: “Para que Filosofia?”. E ele respondeu:
“Para não darmos nossa aceitação imediata às coisas, sem maiores considerações”.

A atitude crítica
A primeira característica da atitude filosófica é senso comum, aos pré-conceitos, aos pré-juízos, aos fatos e às idéias da experiência cotidiana, ao que “todo mundo diz e pensa”, ao estabelecido.
A segunda característica da atitude filosófica é sobre valores, nós mesmos. É também uma interrogação sobre o porquê disso tudo e de nós, e uma interrogação sobre como tudo isso é assim e não de outra maneira. O que é? Por que é? Como é? Essas são as indagações fundamentais da atitude filosófica. 
A Filosofia começa dizendo não às crenças e aos preconceitos do senso comum e, portanto, começa dizendo que não sabemos o que imaginávamos saber; por isso, o patrono da Filosofia, o grego Sócrates, afirmava que a primeira e fundamental verdade filosófica é dizer: “Sei que nada sei”. Para o discípulo de Sócrates, o filósofo grego Platão, a Filosofia começa com a admiração; já o discípulo de Platão, o filósofo Aristóteles, acreditava que a Filosofia começa com o espanto.
Admiração e espanto significam: tomamos distância do nosso mundo costumeiro, através de nosso pensamento, olhando-o como se nunca o tivéssemos visto antes, negativa, isto é, um dizer não aopositiva, isto é, uma interrogaçãoo que são as coisas, as idéias, os fatos, as situações, os comportamentos, osatitude crítica e pensamento crítico.
Como se não tivéssemos tido família, amigos, professores, livros e outros meios de comunicação que nos tivessem dito o que o mundo é; como se estivéssemos acabando de nascer para o mundo e para nós mesmos e precisássemos perguntar o que é, por que é e como é o mundo, e precisássemos perguntar também o que somos, por que somos e como somos.

Para que Filosofia?
Ora, muitos fazem uma outra pergunta: afinal, para que Filosofia?
É uma pergunta interessante. Não vemos nem ouvimos ninguém perguntar, por exemplo, para que matemática ou física? Para que geografia ou geologia? Para que história ou sociologia? Para que biologia ou psicologia? Para que astronomia ou química? Para que pintura, literatura, música ou dança? Mas todo mundo acha muito natural perguntar: Para que Filosofia?
Em geral, essa pergunta costuma receber uma resposta irônica, conhecida dos estudantes de Filosofia: “A Filosofia é uma ciência com a qual e sem a qual o mundo permanece tal e qual”. Ou seja, a Filosofia não serve para nada. Por isso, se costuma chamar de “filósofo” alguém sempre distraído, com a cabeça no mundo da lua, pensando e dizendo coisas que ninguém entende e que são perfeitamente inúteis.
Essa pergunta, “Para que Filosofia?”, tem a sua razão de ser. Em nossa cultura e em nossa sociedade, costumamos considerar que alguma coisa só tem o direito de existir se tiver alguma finalidade prática, muito visível e de utilidade imediata. Por isso, ninguém pergunta para que as ciências, pois todo mundo imagina ver a utilidade das ciências nos produtos da técnica, isto é, na aplicação científica à realidade.
Todo mundo também imagina ver a utilidade das artes, tanto por causa da compra e venda das obras de arte, quanto porque nossa cultura vê os artistas como gênios que merecem ser valorizados para o elogio da humanidade. Ninguém, todavia, consegue ver para que serviria a Filosofia, donde dizer-se: não serve para coisa alguma.
Parece, porém, que o senso comum não enxerga algo que os cientistas sabem muito bem. As ciências pretendem ser conhecimentos verdadeiros, obtidos graças a procedimentos rigorosos de pensamento; pretendem agir sobre a realidade, através de instrumentos e objetos técnicos; pretendem fazer progressos nos conhecimentos, corrigindo-os e aumentando-os.
Ora, todas essas pretensões das ciências pressupõem que elas acreditam na existência da verdade, de procedimentos corretos para bem usar o pensamento, na tecnologia como aplicação prática de teorias, na racionalidade dos conhecimentos, porque podem ser corrigidos e aperfeiçoados.
Verdade, pensamento, procedimentos especiais para conhecer fatos, relação entre teoria e prática, correção e acúmulo de saberes: tudo isso não é ciência, são questões filosóficas, a Filosofia quem as formula e busca respostas para elas. Assim, o trabalho das ciências pressupõe, como condição, o trabalho da Filosofia, mesmo que o cientista não seja filósofo. No entanto, como apenas os cientistas e filósofos sabem disso, o senso comum continua afirmando que a Filosofia não serve para nada.
Para dar alguma utilidade à Filosofia, muitos consideram que, de fato, a Filosofia não serviria para nada, se “servir” fosse entendido como a possibilidade de fazer usos técnicos dos produtos filosóficos ou dar-lhes utilidade econômica, obtendo lucros com eles; consideram também que a Filosofia nada teria a ver com a ciência e a técnica.
Para quem pensa dessa forma, o principal para a Filosofia não seriam os conhecimentos (que ficam por conta da ciência), nem as aplicações de teorias (que ficam por conta da tecnologia), mas o ensinamento moral ou ético. A Filosofia seria a liberdade e a vontade, analisando a capacidade de nossa razão para impor limites aos nossos desejos e paixões, ensinando-nos a viver de modo honesto e justo na companhia dos outros seres humanos, a Filosofia teria como finalidade ensinarnos a virtude, que é o princípio do bem-viver.
Essa definição da Filosofia, porém, não nos ajuda muito. De fato, mesmo para ser uma arte moral ou ética, ou uma arte do bem-viver, a Filosofia continua fazendo suas perguntas desconcertantes e embaraçosas: O que é o homem? O que é a vontade? O que é a paixão? O que é a razão? O que é o vício? O que é a virtude? O que é a liberdade? Como nos tornamos livres, racionais e virtuosos? Por que a liberdade e a virtude são valores para os seres humanos? O que é um valor? Por que avaliamos os sentimentos e as ações humanas?
Assim, mesmo se disséssemos que o objeto da Filosofia não é o conhecimento da realidade, nem o conhecimento da nossa capacidade para conhecer, mesmo se disséssemos que o objeto da Filosofia é apenas a vida moral ou ética, ainda assim, o as perguntas filosóficas - o que, por que e como - permanecem.

O cientista parte delas como questões já respondidas, mas é arte do bem viver. Estudando as paixões e os vícios humanos, o estilo filosófico e a atitude filosófica permaneceriam os mesmos.
Se, portanto, deixarmos de lado, por enquanto, os objetos com os quais a Filosofia se ocupa, veremos que a atitude filosófica possui algumas características que são as mesmas, independentemente do conteúdo investigado. A Filosofia pergunta qual é a característica.
Essas características são:
- perguntar
realidade ou natureza e qual é a significação de alguma coisa, não importa qual; o que a coisa, ou o valor, ou a idéia, é; 
- perguntar
estrutura e quais são as relações que constituem uma coisa, uma idéia ou um valor;
- perguntar
pergunta pela origem ou pela causa de uma coisa, de uma idéia, de um valor.
A atitude filosófica inicia-se dirigindo essas indagações ao mundo que nos rodeia e às relações que mantemos com ele. Pouco a pouco, porém, descobre que essas questões se referem, afinal, à nossa capacidade de conhecer, à nossa capacidade de pensar. Por isso, pouco a pouco, as perguntas da Filosofia se dirigem ao próprio pensamento: o que é pensar, como é pensar, por que há o pensar? A Filosofia torna-se, então, o pensamento interrogando-se a si mesmo. Por ser uma volta que o pensamento realiza sobre si mesmo, a Filosofia se realiza como
 
A reflexão filosófica
Reflexão a si mesmo. A reflexão é o movimento pelo qual o pensamento volta-se para si
mesmo, interrogando a si mesmo. A reflexão filosófica é sobre si mesmo para conhecer-se a si mesmo, para indagar como é possível o próprio pensamento.
Não somos, porém, somente seres pensantes. Somos também seres que agem no mundo, que se relacionam com os outros seres humanos, com os animais, as plantas, as coisas, os fatos e acontecimentos, e exprimimos essas relações tanto por meio da linguagem quanto por meio de gestos e ações.
A reflexão filosófica também se volta para essas relações que mantemos com a realidade circundante, para o que dizemos e para as ações que realizamos nessas relações. A reflexão filosófica organiza-se em torno de três grandes conjuntos de perguntas ou questões:
1. Por que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos e fazemos o que fazemos? Isto é, quais os pensamos, dizermos o que dizemos, fazermos o que fazemos?
2. O que queremos pensar quando pensamos, o que queremos dizer quando falamos, o que queremos fazer quando agimos? Isto é, qual é o significa movimento de volta sobre si mesmo ou movimento de retornoradical porque é um movimento de volta do pensamentomotivos, as razões e as causas para pensarmos o que conteúdo ou o sentido;
3. Para que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos, fazemos o que fazemos?Isto é, qual é a fazemos? do que pensamos, dizemos ou fazemos? intenção ou a finalidade do que pensamos, dizemos, e, essas três questões podem ser resumidas em: O que é pensar, falar e agir? E elas pressupõem a seguinte pergunta: Nossas crenças cotidianas são ou não um saber verdadeiro, um conhecimento?
Como vimos, a atitude filosófica inicia-se indagando: O que é? Como é? Por que é?, dirigindo-se ao mundo que nos rodeia e aos seres humanos que nele vivem e com ele se relacionam. São perguntas sobre a  essência, a significação ou a  estrutura. Já a reflexão filosófica indaga: Por quê?, O quê?, Para quê?, dirigindo-se ao pensamento, aos seres humanos no ato da reflexão. São perguntas sobre a e a origem de todas as coisas.
 
Filosofia: um pensamento sistemático
Essas indagações fundamentais não se realizam ao acaso, segundo preferências e opiniões de cada um de nós. A Filosofia não é um “eu acho que” ou um “eu gosto de”. Não é pesquisa de opinião à maneira dos meios de comunicação de massa. Não é pesquisa de mercado para conhecer preferências dos consumidores e montar uma propaganda.
Que significa isso?
Significa que a Filosofia trabalha com enunciados precisos e rigorosos, busca encadeamentos lógicos entre os enunciados, opera com conceitos ou idéias obtidos por procedimentos de demonstração e prova, exige a fundamentação racional do que é enunciado e pensado. Somente assim a reflexão filosófica pode fazer com que nossa experiência cotidiana, nossas crenças e opiniões alcancem uma visão crítica de si mesmas. Não se trata de dizer “eu acho que ”, mas de poder afirmar “eu penso que”.
O conhecimento filosófico é um trabalho intelectual. É sistemático porque não se contenta em obter respostas para as questões colocadas, mas exige que as próprias questões sejam válidas e, em segundo lugar, que as respostas sejam verdadeiras, estejam relacionadas entre si, esclareçam umas às outras, formem conjuntos coerentes de idéias e significações, sejam provadas e demonstradas racionalmente.
Quando o senso comum diz “esta é minha filosofia” ou “isso é a filosofia de fulana ou de fulano”, engana-se e não se engana. Engana-se porque imagina que para “ter uma filosofia” basta alguém possuir um conjunto de idéias mais ou menos coerentes sobre todas as coisas e pessoas, bem como ter um conjunto de princípios mais ou menos coerentes para julgar as coisas e as pessoas. “Minha filosofia” ou a “filosofia de fulano” ficam no plano de um “eu acho” coerente.
Mas o senso comum não se engana ao usar essas expressões porque percebe, ainda que muito confusamente, que há uma característica nas idéias e nos princípios que nos leva a dizer que são uma filosofia: a coerência, as relações entre as idéias e entre os princípios. Ou seja, o senso comum pressente que a Filosofia opera sistematicamente, com coerência e lógica, que a Filosofia tem uma vocação para formar um todo daquilo que aparece de modo fragmentado em nossa experiência cotidiana.

Em busca de uma definição da Filosofia
Quando começamos a estudar Filosofia, somos logo levados a buscar o que ela é. Nossa primeira surpresa surge ao descobrirmos que não há apenas uma definição da Filosofia, mas várias. A segunda surpresa vem ao percebermos que, além de várias, as definições parecem contradizer-se. Eis porque muitos, cheios de perplexidade, indagam: afinal, o que é a Filosofia que sequer consegue dizer o que ela é?
Uma primeira aproximação nos mostra pelo menos quatro definições gerais do que seria a Filosofia:
1.
corresponde, de modo vago e geral, ao conjunto de idéias, valores e práticas pelos quais uma sociedade apreende e compreende o mundo e a si mesma, definindo para si o tempo e o espaço, o sagrado e o profano, o bom e o mau, o justo e o injusto, o belo e o feio, o verdadeiro e o falso, o possível e o impossível, o contingente e o necessário.
Qual o problema dessa definição? Ela é tão genérica e tão ampla que não permite, por exemplo, distinguir a Filosofia e religião, Filosofia e arte, Filosofia e ciência. Na verdade, essa definição identifica Filosofia e Cultura, pois esta é uma visão de mundo coletiva que se exprime em idéias, valores e práticas de uma sociedade. A definição, portanto, não consegue acercar-se da especificidade do trabalho filosófico e por isso não podemos aceitá-la.
2.
de algumas pessoas que pensam sobre a vida moral, dedicando-se à contemplação do mundo para aprender com ele a controlar e dirigir suas vidas de modo ético e sábio. A Filosofia seria uma contemplação do mundo e dos homens para nos conduzir a uma vida justa, sábia e feliz, ensinando-nos o domínio sobre nós mesmos, sobre nossos impulsos, desejos e paixões. É nesse sentido que se fala, por exemplo, numa filosofia do budismo.
Esta definição, porém, nos diz, de modo vago, o que se espera da Filosofia (a sabedoria interior), mas não o que é e o que faz a Filosofia e, por isso, também não podemos aceitá-la. Visão de mundo de um povo, de uma civilização ou de uma cultura. 
3.
Filosofia Sabedoria de vida. Aqui, a Filosofia é identificada com a definição e a ação e dotada de sentido. Religião e até mesmo opondo uma à outra, pois ambas possuem o mesmo objeto (compreender o Universo), mas a primeira o faz através do esforço racional, enquanto a segunda, por confiança (fé) numa revelação divina. Ou seja, a Filosofia procura discutir até o fim o sentido e o fundamento da realidade, enquanto a consciência religiosa se baseia num dado primeiro e inquestionável, que é a revelação divina indemonstrável. Pela fé, a religião aceita princípios indemonstráveis e até mesmo aqueles que podem ser considerados irracionais pelo pensamento, enquanto a Filosofia não admite indemonstrabilidade e irracionalidade. Pelo contrário, a consciência filosófica procura explicar e compreender o que parece ser irracional e inquestionável. No entanto, esta definição também é problemática, porque dá à Filosofia a tarefa de oferecer uma explicação e uma compreensão totais sobre o Universo, elaborando um sistema universal ou um sistema do mundo, mas sabemos, hoje, que essa tarefa é impossível.
Há pelo menos duas limitações principais a esta pretensão totalizadora: em primeiro lugar, porque a explicação sobre a realidade também é oferecida pelas ciências e pelas artes, cada uma das quais definindo um aspecto e um campo da realidade para estudo (no caso das ciências) e para a expressão (no caso das artes), já não sendo pensável uma única disciplina que pudesse abranger sozinha a totalidade dos conhecimentos; em segundo lugar, porque a própria Filosofia já não admite que seja possível um sistema de pensamento único que ofereça uma única explicação para o todo da realidade. Por isso, esta definição também não pode ser aceita.
4.
Filosofia, cada vez mais, ocupa-se com as condições e os princípios do conhecimento que pretenda ser racional e verdadeiro; com a origem, a forma e o conteúdo dos valores éticos, políticos, artísticos e culturais; com a compreensão das causas e das formas da ilusão e do preconceito no plano individual e coletivo; com as transformações históricas dos conceitos, das idéias e dos valores.
A Filosofia volta-se, também, para o estudo da consciência em suas várias modalidades: percepção, imaginação, memória, linguagem, inteligência, experiência, reflexão, comportamento, vontade, desejo e paixões, procurando descrever as formas e os conteúdos dessas modalidades de relação entre o ser humano e o mundo, do ser humano consigo mesmo e com os outros. Finalmente, a Filosofia visa ao estudo e à interpretação de idéias ou significações gerais como: realidade, mundo, natureza, cultura, história, subjetividade, objetividade, diferença, repetição, semelhança, conflito, contradição, mudança, etc.
Esforço racional para conceber o Universo como uma totalidade ordenada. Nesse caso, começa-se distinguindo entre Filosofia e Fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e das práticas. A Sem abandonar as questões sobre a essência da realidade, a Filosofia procura diferenciar-se das ciências e das artes, dirigindo a investigação sobre o mundo natural e o mundo histórico (ou humano) num momento muito preciso: quando perdemos nossas certezas cotidianas e quando as ciências e as artes ainda não ofereceram outras certezas para substituir as que perdemos.
Em outras palavras, a Filosofia se interessa por aquele instante em que a realidade natural (o mundo das coisas) e a histórica (o mundo dos homens) tornam-se estranhas, espantosas, incompreensíveis e enigmáticas, quando o senso comum já não sabe o que pensar e dizer e as ciências e as artes ainda não sabem o que pensar e dizer.
Esta última descrição da atividade filosófica capta a Filosofia como condições da ciência, da religião, da arte, da moral), como da consciência para si mesma para conhecer-se enquanto capacidade para o conhecimento, o sentimento e a ação) e como preconceitos individuais e coletivos, das teorias e práticas científicas, políticas e artísticas), essas três atividades (análise, reflexão e crítica) estando orientadas pela elaboração filosófica de significações gerais sobre a realidade e os seres humanos. Além de análise, reflexão e crítica, a Filosofia é a busca do fundamento e do sentido da realidade em suas múltiplas formas indagando o que são, qual sua permanência e qual a necessidade interna que as transforma em outras. O que é o ser e o aparecer-desaparecer dos seres?
A Filosofia não é ciência: é uma reflexão crítica sobre os procedimentos e conceitos científicos. Não é religião: é uma reflexão crítica sobre as origens e formas das crenças religiosas. Não é arte: é uma interpretação crítica dos conteúdos, das formas, das significações das obras de arte e do trabalho artístico. Não é sociologia nem psicologia, mas a interpretação e avaliação crítica dos conceitos e métodos da sociologia e da psicologia. Não é política, mas interpretação, compreensão e reflexão sobre a origem, a natureza e as formas do poder. Não é história, mas interpretação do sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e compreensão do que seja o próprio tempo. Conhecimento do conhecimento e da ação humanos, conhecimento da transformação temporal dos princípios do saber e do agir, conhecimento da mudança das formas do real ou dos seres, a Filosofia sabe que está na História e que possui uma história.

Inútil? Útil?
O primeiro ensinamento filosófico é perguntar: O que é o útil? Para que e para quem algo é útil? O que é o inútil? Por que e para quem algo é inútil? O senso comum de nossa sociedade considera útil o que dá prestígio, poder, fama e riqueza. Julga o útil pelos resultados visíveis das coisas e das ações, identificando utilidade e a famosa expressão “levar vantagem em tudo”. Desse ponto de vista, a Filosofia é inteiramente inútil e defende o di reito de ser inútil.
Não poderíamos, porém, definir o útil de outra maneira?
Platão definia a Filosofia como um saber verdadeiro que deve ser usado em benefício dos seres humanos.
Descartes dizia que a Filosofia é o estudo da sabedoria, conhecimento perfeito de todas as coisas que os humanos podem alcançar para o uso da vida, a conservação da saúde e a invenção das técnicas e das artes.
Kant afirmou que a Filosofia é o conhecimento que a razão adquire de si mesma para saber o que pode conhecer e o que pode fazer, tendo como finalidade a felicidade humana.
Marx declarou que a Filosofia havia passado muito tempo apenas contemplando o mundo e que se tratava, agora, de conhecê-lo para transformá-lo, transformação que traria justiça, abundância e felicidade para todos.
Merleau-Ponty escreveu que a Filosofia é um despertar para ver e mudar nosso mundo.
Espinosa afirmou que a Filosofia é um caminho árduo e difícil, mas que pode ser percorrido por todos, se desejarem a liberdade e a felicidade.

Qual seria, então, a utilidade da Filosofia?
Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se não se deixar guiar pela submissão às idéias dominantes e aos poderes estabelecidos for útil; se buscar compreender a significação do mundo, da cultura, da história for útil; se conhecer o sentido das criações humanas nas artes, nas ciências e na política for útil; se dar a cada um de nós e à nossa sociedade os meios para serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a liberdade e a felicidade para todos for útil, então podemos dizer que a Filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são capazes.
Texto de Marilena Chauí